Mulheres na América Portuguesa

 “No teatro da memória,
as mulheres são sombras tênues”


Michelle Perrot,
Práticas da memória feminina, 1989

Em algum dia do ano de 1592, Catarina Garcia de Cabreira escreve de Arraiolos a seu marido Antonio do Vale de Vasconcelos, em Salvador, pedindo notícias e mandando saudades, pois seus olhos “já não veem de tanto chorar” (Cabreira, 1592); em um outro dia daquele mesmo ano, na Madeira, Inês Fernandes escreve a João Gonçalves, seu primo e pai de seu filho, pedindo ajuda para ser embarcada com o menino para junto dele no Brasil, por conta das necessidades que passam, suplicando “que se alembre de uma órfã tão desamparada e de seu filho que passa muitos bocados de fome” (Fernandes, 1592). Em 24 de março de 1591, uma outra mulher escrevia a seu marido, de Oeiras a Pernambuco, pedindo provimentos para o filho e contando do “muito trabalho que tenho levado por amor de vós” – e assina: “Desta que não devera ser, Vicência Jorge” (Jorge, 1591). Em São Paulo, nos idos de 1730, Maria Clara da Anunciação escreve a seu namorado: “Sr. Antônio José, vossa mercê não me quer bem... eu quero a sua pessoa bem... peço a vossa mercê por quem é, não faça cousa que se diga cousa de menino” (Anunciação, 1730). Em 16 de março de 1775, Anna Maria Cardosa, de próprio punho, escreve ao alferes de Atibaia, Domingos Leme do Prado, pedindo que ele prenda seu pai e seu irmão, que abusam sexualmente dela e das irmãs, e que agora, ela revela, “…andam me jurando a pele” (Cardosa, 1775).

Essas palavras registradas em raros exemplares de escritos feitos por mulheres ao longo dos primeiros séculos da formação da América Portuguesa chegaram até nós por diferentes acidentes históricos: as cartas de Catarina, Inês e Vicência foram preservadas como provas em processos da Inquisição de Lisboa (pois os destinatários das três missivas foram acusados e processados como bígamos); a carta de Maria Clara, como prova no processo movido contra o namorado Antônio por quebra de promessa de casamento; a de Anna Maria Cardosa, por ter chegado a uma instância importante da organização administrativa-militar da época e pela sorte de ter sido enviada a um alferes cioso de seus papéis, que legou vasta documentação preservada até hoje. Para além da condição fortuita de terminarem inseridos nas atas do Santo Ofício ou nos maços frios da correspondência administrativa colonial, foi muito rara a preservação de documentos escritos por mulheres no reino de Portugal e na América Portuguesa ao longo do período colonial – tanto por, na maior parte dos casos, terem feito parte das esferas não letradas e de baixa condição social, quando por, mesmo quando letradas, terem sido impedidas de participar das relações de poder, e portanto, do espaço  mais amplo da circulação da escrita.

Assim, os apelos, as súplicas, os protestos de amor e de vingança de Vicência, Inês, Catarina, Maria Clara e Anna Maria chegam até nós como réstias de luz que irromperam, por pequenos rasgos, o manto espesso que cobria a vida e o cotidiano das mulheres no contexto da América Portuguesa – luzes tênues lançadas sobre as sombras das mulheres “no teatro da memória”, a lembrarmos Michelle Perrot (Perrot, 1989).

De fato, tendo em conta o que se sabe sobre as condições de vida das mulheres no contexto colonial, e sobre seu acesso ao letramento e às instâncias públicas de expressão (como mostrado, entre outros, por Priore 1990, 1994; e Algranti, 1992, 1998), a surpresa não recai sobre a escassez de registros escritos por elas na época, mas sim sobre o fato de chegarmos a nos deparar com algum testemunho deles, séculos depois. À raridade e escassez desse conjunto documental soma-se a dificuldade de sua reunião, explicada talvez pela natureza díspar que motivou o registro escrito acerca das mulheres e (mais raramente) dos documentos escritos pelos próprios punhos femininos, talvez pelo diminuto grau de interesse sobre o tema do cotidiano feminino de parte da historiografia mais tradicional. A historiografia que se debruçou sobre a história das mulheres na América Portuguesa a partir da década de 1980 bebeu em fontes primárias majoritariamente inéditas e cuja principal característica é a dispersão custodial.

O Projeto M.A.P. (Mulheres na América Portuguesa): Mapeamento de escritos de mulheres e sobre mulheres no espaço atlântico português a partir de métodos das Humanidades Digitais está reunindo virtualmente essa documentação dispersa em único ponto de acesso, o Catálogo eletrônico online “Mulheres na América Portuguesa”, possibilitando que as vozes relatadas presentes nas fontes primárias tornem-se vozes autorais, narradoras de suas próprias histórias.

O Catálogo contém informações arquivísticas e temáticas sobre cada documento encontrado e um índice onomástico das mulheres escreventes e das mulheres com discurso relatado nos documentos. A ideia de reunir documentos de mulheres e sobre mulheres forma-se por força da contingência da raridade da documentação autoral, que já comentamos; para complementá-la, buscamos e catalogamos também textos coetâneos escritos sobre mulheres. Mais especificamente, que incluam ‘falas’ de mulheres na forma de discursos relatados (tipicamente, na forma de confissões, denúncias, e outros elementos componentes de processos criminais ou instrumentos administrativos), um material que, embora não traga a voz imediata das mulheres, como no caso do primeiro grupo documental, ainda assim traz elementos importantes para a compreensão e contextualização daquele.

O Catálogo Mulheres na América Portuguesa pretende assim compor um mapa polifônico de vozes de mulheres que escreveram no período colonial, somadas ao registro do discurso relatado de mulheres cujo comportamento, por diferentes razões, mereceu a atenção da sociedade da época – em geral, da parte das instâncias disciplinadoras da Igreja e da administração colonial. Nesse mapa importa, centralmente, a literalidade da expressão e a literalidade do relato da expressão, sendo esta uma investigação originária do campo da filologia e da linguística histórica. Assim, colocamos a fidedignidade documental como pedra de toque do trabalho, para compor um conjunto que atenda aos interesses de diferentes linhas de pesquisa, notadamente a história do cotidiano e a história das mulheres no Brasil. Nessa construção, procuramos ter em mente a riqueza e a delicadeza da questão da condição da mulher na Idade Moderna, em particular no contexto colonial – no qual opera o violento processo da colonização de gênero, como iremos sugerir mais à frente, inspiradas em Federici (2017). O silêncio em torno desse processo (em particular na historiografia que antecede a década de 1980) não apenas não deve nos turvar a vista sobre suas consequências, como, de fato, faz pesar sobre nós – mulheres do século XXI com o ofício de documentar e ler o passado – a responsabilidade sobre sua exposição. O ruído precisa soar. E de fato: se a historiografia em tantos momentos se calou, os documentos, de seu lado, encerraram vozes cristalinas, ainda que enclausuradas em uma documentação opaca. Organizar essa documentação para o leitor erudito e especialista é uma tarefa importante; mais importante, porém, será tornar mais transparentes as vozes ali encerradas para a leitora leiga.

É esse nosso intuito com o presente Projeto, cujos trabalhos preliminares, iniciados em agosto de 2017, já apresentam alguns resultados incipientes. No que segue, buscamos resumir e contextualizar esses resultados, comentar os desafios enfrentados e justificar os próximos passos eleitos para a fase de consolidação das pesquisas, a ser empreendida no escopo da presente Proposta.

Objetivo geral

O Projeto M.A.P. (Mulheres na América Portuguesa): Mapeamento de escritos de mulheres e sobre mulheres no espaço atlântico português a partir de métodos das Humanidades Digitais tem como objetivo central sistematizar e tornar visível para pesquisas futuras um conjunto de fontes documentais imensamente importantes para os estudos filológicos e para os estudos da história da língua, da história social, da história da escrita e da leitura, e da história das mulheres no Brasil, por meio da construção de um catálogo eletrônico de documentos escritos por mulheres na América Portuguesa entre 1500 e 1822. A relevância do Projeto reside fundamentalmente na possibilidade de organização inédita dessa documentação a um tempo escassa e fundamental para a compreensão da história da formação do Brasil.

O Projeto se integra ao Grupo de Pesquisas Humanidades Digitais (http://www.nehilp.org/~nehilp/HD), liderado pela Profa. Maria Clara Paixão de Sousa, e é abrigado no NEHiLP, Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa (http://www.nehilp.org ), coordenado pela Profa. Vanessa Martins do Monte.

Na presente formulação, o Projeto constitui uma fase de consolidação das pesquisas, que se iniciaram de forma preliminar em  2017. Veja abaixo todas as versões e fomentos do Projeto até este momento.


Detalhamento e versões do Projeto (2017-2019)

Bibliografia geral