Imagem: Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Maria Barbosa foi denunciada e processada pela Inquisição Portuguesa sob a acusação
de ser feiticeira, alcoviteira, cometer adultério "dobrado", estar "abarregada" com
mais de um homem e fazer pouco caso da Igreja (deixando-se estar excomungada e insultando
o bispo do Brasil), entre outras culpas. Nascida em Évora e moradora na Bahia de Todos
os Santos, no ano de 1609 Maria já havia sido degredada e castigada algumas vezes
por culpas semelhantes. Em Angola, fora "encarochada" e penitenciada pois teria mostrado
a imagem da esposa do governador em um recipiente de água e previsto corretamente
por quantos anos o mesmo manteria o cargo. Marta Fernandes, que também estava em Angola,
degredada por culpas de bigamia, testemunha contra Maria e afirma que ela "trazia
um osso de enforcado ao pescoço e dizia que era osso de santo, para febres". Já no
Brasil, Maria teria sido castigada mais duas ou três vezes: em Pernambuco, na Paraíba
e no "Rio Grande". Segundo os vizinhos que a denunciaram no processo, Maria também
maltratava o marido, o ourives João da Cruz. Eles contam que, além de desonrá-lo por
estar "publicamente infamada" com o ajudante Francisco Carvalho e o sombreireiro,
também casado, Diogo Castanho, Maria espancava João, o ameaçava de morte, o chamava
de nomes como "cornudo" e "cabrão", e o amarrava ao pé da cama enquanto tinha relações
com outros na sua frente. As testemunhas também afirmam que Maria dava "alcouce" em
sua casa, facilitando mulheres aos homens que ali visitavam e se pondo com eles a
comer, beber e "fazer ofensas a Deus". O fato de Maria Barbosa ser protegida pelo
governador do Brasil, Dom Diogo de Meneses, fez com que o bispo Constantino Barradas
a perseguisse mais intensamente e, finalmente, a mandasse prender em 1612. Tomada
por "cólera" e "paixão", Maria, desembainhando uma espada, pôs-se a ameaçar o meirinho
que a ia prender e dizer pelas ruas, na frente de muitas pessoas, que "a sua dianteira
era para o governador e a sua traseira era para o dito bispo". Na prisão, ela também
teria dito "que trampa para o bispo e seus oficiais", que não tinha "dever" nem com
ele, nem com outras pessoas eclesiásticas e que estava sob a jurisdição de "El-Rei",
não da Igreja. Após um longo processo, Maria foi, por fim, condenada em 1614 a dois
anos de degredo "para as capitanias de baixo" e dois domingos de penitência pública,
pela qual teve de ficar em pé, sem manto e descalça, com uma vela acesa nas mãos,
"no cruzeiro da Sé" da cidade, pela duração da missa maior. Dentre os fólios que compõem
o conjunto documental deste processo, há um manuscrito em primeira pessoa do singular,
no qual estão nomeadas algumas das testemunhas que denunciaram Maria Barbosa e que
são indicadas como seus "inimigos capitais" que lhe "alevantaram todas estas velhacarias".
Documento acessivel, digitalizado e editado filologicamente de forma parcial
Edição parcial do documento primário
Processo de Maria Barbosa, mulher parda, casada com João da Cruz, ourives, natural
da cidade de Évora, moradora na da Bahia de Todos os Santos, partes do Brasil, presa
no cárcere da Inquisição desta cidade de Lisboa. [...] | Aos Inquisidores da herética
pravidade na mesa do Santo Ofício em Lisboa. Do bispo do Brasil. | Maria Barbosa,
mulata (de cuja vida e costumes constará por os papéis que vão com esta), foi compreendida
em graves culpas na visitação que nesta cidade fiz na quaresma de 1610, por razão
das quais foi pronunciada a prisão. E indo o meirinho da Igreja para a prender, se
ocultou em casa do governador Dom Diogo de Meneses, o qual a favoreceu tanto que não
somente impediu o castigo que a Igreja lhe queria dar para emenda sua e exemplo da
terra, mas foi causa de per[sever]ar em seus erros com mais liberdade, [...]. Coisa
maravilhosa, não havendo causa e, sendo a mulher notoriamente a mais prejudicial e
escandalosa que há nestas partes, onde há muitas ruins, acordaram que era agravada,
com o que ficou mais segura em seus pecados e mais mimosa do governador, falando com
ela publicamente à janela e comunicando ainda, depois de estar excomungada em muitos
meses, que nesta forma a teve em casa, com grande escândalo da gente e desprezo das
censuras. | E, por estes excessos serem grandes e poder haver novas desordens, se
dissimulou com a mulata até que, tornando para sua casa, a mandou o vigário não prender,
por não alterar, senão notificar uma vez e outra que se livrasse das culpas que contra
ela havia em visitação. E, por não querer aparecer, confiada nos favores certos, depois
de passados os termos ordinários, se procedeu à revelia e se deu a sentença que vai
nos papéis, a qual se lhe intimou e foi depois declarada pelo cura da Sé com o que
não perdeu os favores dantes, antes os teve maiores, trazendo um facalhão grande que
desembainhava diante do governador e dizia que com ele havia de matar os oficiais
da Igreja que dela quisessem lançar mão, e que não tinha de ver com excomunhões nem
com os ministros da Igreja, com outras palavras que, por muito sujas se não põem aqui,
nem se escreverão na visitação. [...] Constantino. Bispo do Brasil. | [...] Traslado
das culpas de Maria Barbosa, mulata, da visitação que se fez nesta cidade no ano de
seiscentos e nove. | [...] Ana de Medina, de idade de trinta e oito anos, a quem o
senhor visitador deu juramento, informa. E, perguntada geralmente, disse que Maria
Barbosa, mulata, é mulher muito desbocada, em jurar juramentos muito graves. E que
já em Angola e em Pernambuco fora penitenciada por isso. E que é mulher que vive mal
e que está publicamente infamada com Francisco Carvalho, ajudante. E que ela testemunha
o vê entrar aí de ordinário. E que a dita é casada e desonra o marido de cornudo,
e o espanca, e o traz pelos matos para ela melhor ficar a sua vontade. E que o amarra
ao pé do catre e se dorme diante dele com seus barregãos e diz "comei, cornudo, que,
depois que eu comer, comereis o que sobejar". [...] Disse mais, que Maria Barbosa,
mulata, mostrou em um alguidar de água a Manoel de Silveira, governador de Angola,
sua mulher que estava em Portugual e lhe disse os anos que havia de governar Angola.
E assim como ela disse assim aconteceu. E al não disse, nem do costume. E assinei
por ela com o senhor visitador. O licenciado Francisco Pereira, o escrevi. O licenciado
Francisco Pereira. Pedro do Campo. | [...] Muito ilustres senhores, Por artigos de
contraditas as testemunhas seguintes, diz a ré, Maria Barbosa, [**]: 1. Que Inês de
Azevedo, mulher de [boas] [**], era inimiga capital dela, ré, porquanto ela a repreendia
muitas vezes, dizendo-lhe que não fosse ruim mulher. E, por diferenças que com ela
teve, lhe [acertou] com uma balança as queixadas, de que lhe ficou tendo mais ódio.
E porquanto chamava a seu marido "cornudo" e a ela "aleivosa". 2. Que Felipa Cabral,
mulher preta, era também inimiga capital dela ré, porquanto ela, ré, lhe tomou à força
de sua caixa que tinha dois mil réis que lhe devia e não lhe queria pagar, [por onde]
[diria] [contra] ela. 3. Que Antônia Rodrigues, mulher preta, era também inimiga dela,
ré, porquanto ela, ré, foi uma vez à sua casa e lhe apedrejou a porta e lhe chamou
"cadela", "perua", "conluiadeira" e "alcoviteira". | 4. Que Marta Fernandes era também
sua inimiga, porquanto ela, ré, a tomou em casa do governador e lhe deu muitas pancadas
e bofetadas e, além disso, é mulher bêbada e foi açoitada publicamente, por casar
duas vezes, sendo ambos os maridos vivos. 5. Que Manoel Gonçalves era inimigo capital
dela, ré, porque sobre diferenças que tiveram sobre uma mulher se desonraram um a
outro de muito ruins palavras e injúrias e, de mais disto, é homem bêbado que sempre
anda tomado do vinho. Que Manoel Borges era homem simples e mentecapto e grande bêbado
que sempre andava tomado do vinho, pelo que, a seu dito se não deve dar crédito. Que
João Luís Santos, meirinho dos clérigos, era também inimigo dela, ré, porquanto, vindo
para a prender, ela ré arrancou para ele uma espada e lhe chamou "vilão muito ruim".
Que Domingos Rodrigues, correeiro, era também inimigo dela, ré, porquanto ela, ré,
lhe deu cinco cutiladas, de que ficou mal ferido e lhe ficou tendo por isso grande
ódio e é homem de má vida e costumes. | Do que é voz e fama pública. Recebido e provado
o que baste, os ditos das ditas pessoas lhe não [prejudicarem] coisa alguma e serem
havidos e julgados por nulos, [oni] [mel] [moõ] et [via] [ur] [expenss]. | Diogo Gonçalves
Ribeiro. | Primeiramente, Manoel Gonçalves, carapina, homem de mau viver, meu inimigo
capital. Sua manceba, Beatriz Pereira. Manoel Borges, soldado, ser um homem de mau
viver e de má consciência. Mais Antônio Lopes. Mais Domingos Rodrigues, correeiro.
Mais Antônio Teixeira, por alcunha "o Mil Homens". Mais Antônia Rodrigues, mulher
negra, por alcunha ["a Luzilho [Cu]"]. Mais Gonçalo Homem de Almeida, promotor da
justiça, "o Bacalhau" de alcunha. Mais Inês de Azevedo, Marta Fernandes, mulher que
foi açoitada em Pernambuco pelo auto-de-fé. Mais Felipa Cabral, negra que foi escrava.
Mais Antônio Viegas, cura da Sé. Estes todos são meus inimigos capitais e me alevantaram
todas estas velhacarias por emde há quinze meses que estou presa.
(Edição feita por: Elisa Hardt Leitão Motta; Beatriz de Freitas Cardenete; Maria Clara Ramos Morales
Crespo; Mariana Lourenço Sturzeneker; Natalia Zacchi; Sofia Tonoli Maniezo Zani; Vanessa
Martins Monte)
Menção em documentos secundários
Mello e Souza, Laura de. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das
Letras; 2005. p.335.:
Maria Barbosa era uma mulher parda natural de Évora, onde se casara com o ourives
João da Cruz. Segundo testemunhas que a acusaram, saíra em sua terra encarochada por
feiticeira. A pena que lhe aplicaram deve ter sido o degredo para Angola, onde a conhecera
outra parda, Marta Fernandes: neste lugar, "mostrou em um alguidar de água a mulher
do governador (ileg.) da Silveira Pereira lavrando num arado, cozendo vestida de verde";
naquela época, costumava trazer ao pescoço um osso de enforcado: persistia, portanto,
nos hábitos, e açoitaram-na publicamente por feiticeira e alcoviteira. Passou depois
para Pernambuco, onde novamente "estiveram para a encarochar, e por respeito do marido,
o não fizeram"; "andou correndo muita parte do mundo por a botarem fora de toda a
parte onde ia, assim de Pernambuco como do Rio Grande, e da ilha de Fernão de Noronha,
e de Angola, e da cidade de Évora"; "nunca esteve em terra aonde não levasse mau caminho",
sempre reincidindo nos feitiços. Em, 1610, já se achava na Bahia havia algum tempo;
neste ano, o bispo D. Constantino Barradas realizou uma Visita à cidade e enviou os
resultados para o reino. Dentre os culpados, constava Maria Barbosa.
Termos de caracterização social usados no documento
'cristã-velha; mulata; parda'
Dados biográficos conhecidos
Idade: 50 anos
Estado civil: Casada
Morada: Bahia, Brasil
Naturalidade: Évora, Portugal
Dados internos
Maria Barbosa,
Nomeada em documento primário [0053]
Rede documental: [0064]
Catalogado por: Maria Clara Paixão de Sousa; Elisa Hardt Leitão Motta